em branco

imbecis, ou os desesperançados

conto escrito em 1999, baseado em uma história real/notícia de jornal.

- São trouxas, caem como moscas na sopa.
- Mas
- Vai dizer que tem dó?! É mole, são uns imbecis. Os imbecis nasceram pra serem dominados pelos fortes. Vai acabar pegando gosto na coisa, é a lei da sobrevivência. E depois a gente não mata ninguém, mata? Pois é, tu gosta de tomar teu goró, gosta de ir num forró, de pegar as gatas, gosta de pulseira, colar, anel, perfume, tênis caro... Tem que fazer por onde!
...
Venderam tudo, a parca terra castigada pela seca, uns poucos anéis de ouro da época da vó, porco, galinha, sofá, cadeira, cama. Só ficou a velha máquina de costura porque a mãe, costureira de mão cheia, cismou de fazer fortuna com ela na cidade grande.
O pai estava cheio de esperanças, um irmão que já tinha ido escrevera que estava bem de vida, trabalhando de servente numa obra e que tinha até lugar pra ele. Mandou endereço e tudo. A professora das crianças leu a carta e o pai decidiu.
Com tudo, tudo, tudo, juntaram um dinheirinho que dava pra um mês na cidade grande, uma fortuna que nunca tinham contado assim em notas; suas vidas trocadas em miúdos.
Deu um trabalhão danado pôr a máquina de costura no ônibus, mas grandes esperanças se acomodam em qualquer cantinho. A viagem foi a semana mais feliz de suas vidas, comendo espetinho de carne e cerveja nos restaurantes de beira de estrada, descobrindo mundo, contando os quilômetros pra chegar.
...
- Esses tipos têm de monte, de longe a gente vê. Ó, tá vendo aqueles ali, com aquele papel na mão? Me observa. - Ato contínuo, virou-se para os tipos - Precisam de ajuda? Parece que estão perdidos...
- Ô, moço, a gente chegou agora, quer ir pra este endereço aqui... Será que tá longe?
- Deixa eu ver... Hummm, não é difícil, não. Vou falar com o taxista. Tem dinheiro aí?
- Por quê?
- A corrida é meio cara. Tem que ver se o dinheiro dá.
- Ô, se dá, seu moço! É uma dinheirama lascada!
- Deixa eu ver.
- Sei não.
- Eu venho, na maior boa vontade, tentar ajudar, e vocês ainda desconfiam de mim? Se virem, então!
- Desculpa ofender, seu moço, é que sabe como é que é...
- Deixa eu ver.
- Tá aqui.
- Deve dar, deve dar. Deixa eu falar com o homem.
Botou o dinheiro no bolso, virou-se para o parceiro, e disparou, "Tá vendo? Eu não disse que era moleza? Imbecis."

De fato, conversaram com um motorista de táxi, mas entraram no carro sem se voltar para chamá-los.

As crianças ficaram brincando de balançar os pés sentadas na máquina de costura, enquanto a mãe e o pai olhavam, desesperançados, o táxi desaparecer na cidade.

Vai ver ou vir?

Ei, olhe para mim
e imagine então como seria
passear pelos bosques da periferia,
desfilar nas passarelas que relam a rodovia
ou então voar pela avenida pendurado numa pipa
que mais parece um paraquedas, sustentando ideias velhas
quase sempre com varetas muito retas, muito mais fáceis de quebrar

Ou olhe pra ele
com um pouco de medo
ou vindo quem sabe do banheiro
mais alguma das histórias pelos cotovelos
de quem certamente já teve muitas pra contar,
só não desista de continuar pelos cantos do corredor
por mais que insistam ou implorem ou te peçam por favor

Agora olhe pra trás
e lembre-se da sua cidade
do que ela te traz como saudade
ou do que na realidade sempre foi ilusão,
pois que nesta nova incursão toda ação é reação
do que se tem vontade, basta assim muita coragem
força pra seguir viagem e tino aventureiro por superação

Mas olhe pra frente
coerente que: "sente que sim"
sem de repente "sentir-se que não"
e que se seu dia "vai e vem" e vê em vão
intermitentemente vai ver ou vir numa escada
descendo e subindo as plataformas de um terminal
sem que alguém te toque de nada, sem que toque um sinal

são paulo à vista!


São Paulo à vista!
O cometa vinha lotado:
Sonho, medo, esperança
Galinha, cabrito, gado,

E nenhuma idéia
De quem dorme
Na cadeira ao lado:

Migrante, japonês, turista,
Zarolho, piolho, punguista!

São Paulo à vista!
O cometa vinha lotado:
Pó de estrelas, vento solar
E a brisa do Rio Tietê,

Eu, você,
O diabo a quatro
Mais dez milhões de desgraçados
Indo e vindo e rindo e lindo
Através do vidro embaçado.

sem título

Urubu urubu urubupungá
Itapê itapê itapemirim
O cometa eu perdi por um triz
Eu era índio na última vez em que fui feliz

Mas em janeiro
Quando todo brasileiro
Embarca em sua própria versão
De um mediterrâneo cruzeiro

Eu vou comprar um bilhete
Para São Sebastião
Vou tomar um sorvete
E – ah! – vou ser feliz

Vou tomar banho de chafariz
Vou pedir bis à meretriz
Vou ser feliz como quem
Fez plástica no nariz

E depois eu vou rezar
Para que a existência se resuma
A um último verão

Porque a felicidade é uma pedrinha lisa
Pequenin pequeninin
Que escapa pelas mãos

OFICINA DA ILUSÃO: PRÓXIMA ESTAÇÃO

OFICINA DA ILUSÃO: PRÓXIMA ESTAÇÃO

todos nós tivemos verões

O piso de tábuas negras
a rede de vime negro
o rio prata a tarde a chuva
e a canoa no meio do rio

Os biscoitos doces da parada no meio da viagem
derretendo na língua os teus seios palpáveis como sonhos
os teus seios pelas frestas da camisa amadurecendo
como uma canção de Roberto Carlos

As canções de Roberto Carlos
o Cristo Redentor
os sorvetes teu sorriso pingando nas mãos meladas
a areia faiscando estrelas sob nossos dedos
a cachoeira nua
as fotografias queimadas
as mangas roubadas
os frutos proibidos
saltos d’água no escuro
cidades dissolvendo-se no ar
as andorinhas em Toledo

Lembranças bruxuleando velas nas quais descobrimos
a tinta invisível dos anos

Todos nós tivemos verões
amores de verão
dois olhos negros
pedindo carona nas trincas do asfalto
da Estrada Velha de Santos
de onde seguiríamos em frente

Todos nós tivemos verões
espumas nas ondas
rajadas de vento
um ponto negro no tempo
onde ficou combinado
seguiríamos em frente

estação da luz

(por Karla Jacobina)

Eu seguia na rua, como a uma mulher grávida, sem conseguir olhar os pés. Eu seguia na rua, como a purpurina em um pote aberto, em que o vento da noite passa e te esparrama pelo asfalto. Eu seguia na rua e não seguia mais cega. Eu parei de empurrar o corpo para frente fingindo levá-lo para casa. Eu parei de bussolar os meus pés birutas. Eu parei de escarpaniar, de sapatear e de tamancar Eu simplesmente ouvi o seu "pé-raí!" e parei. Eu grudei toda a carne na parede pixada da estação da luz. Desestiquei os olhos. Abri os pés e andei parada. Eu era a estação da luz a olhar os meus passaligeiros passar por mim.


Meu pai (por Ferreira Gullar)


















meu pai foi
ao Rio se tratar de
um câncer (que
o mataria) mas
perdeu os óculos
na viagem

quando lhe levei
os óculos novos
comprados na Ótica
Fluminense ele
examinou o estojo com
o nome da loja dobrou
a nota de compra guardou-a
no bolso e falou:
quero ver
agora qual é o
sacana que vai dizer
que eu nunca estive
no Rio de Janeiro

antes de sair

(por Karla Jacobina)



Eu tomei o último chá no copo de requeijão, antes de sair.
Antes de sair, eu abri a janela que viveu sendo parede.
Eu lavei colheres de plástico, antes de sair.
Antes de sair, eu lavei as mãos de veludo com sabonete de pêssego.
Eu equilibrei água dos olhos, antes de sair.
Antes de sair, eu mudei os livros de lugar na estante torta.
Eu li as linhas das folhas da planta, antes de sair.
Antes de sair, abraços ternos dos ternos de risca de giz.
Eu engoli a seco, caroço de ameixa, antes de sair.
Antes de sair, eu vivi o segundo dia como se fosse o segundoe o último dia como se fosse o último.
Eu andei pelo corredor de portas, escolhi a que abria a rua e saí.

sem destino




Você me olhou, viado, e eu li a fraqueza em seus olhos.

Na última poltrona, a da sacanagem, afagos disfarçados na primeira metade da viagem.
No banheiro da parada de beira de estrada, uma trepada ligeira e chuveiro.

Seu grito mudo no espelho.

Escorrendo pelo ralo, seus pêlos e sangue.

Os riscos de quem viaja desacompanhado: nunca se sabe quem vai ao seu lado.

Rodopiando



Assobiando longe, rodovinham os verões.
Rodopiando, piando, passarinhos, rodoíamos sob chuva e brisa à casa da vó no interior.

Tínhamos asas e jamais voltamos
a ter paz.

despedida em negrito

(por Karla Jacobina)


Depois que nossas mãos se desgrudaram nos degraus do ônibus, terminei de subi-los com nossos olhos dados. Empurrando uns e outros, parei diante da fresta que zelava por seu rosto. Era um rosto de despedida, com lenços brancos no semblante.
O motorista deu partida. Meu peito minguava enquanto meus olhos cresciam acompanhando seu rosto percorrer as janelas do ônibus e por fim, se pôr na janela mais oriental.
Nós já nos despedimos tantas vezes e ainda assim, a cada chacoalhar de mão por detrás do vidro, sentia o meu sangue coalhar e azedar o gosto da despedida.
Sentada com a mochila no colo e os fones no ouvido, ouvia uma de suas canções favoritas que se pergunta tanto e a todo tempo, que chega a perguntar até no nome "Por que te vas?". Eu sabia porque ia, só não entendia porque ia tanto. O azedume da despdedia não era meu sabor predileto, mas me alimentava, ainda que de uma forma estranha.
Lágrimas de cândida desbotavam os meus olhos. Descoloridos, se tornaram incapazes de reconhecer minha rua. A linha de chegada, a do Equador, a de partida, eu não enxergava. Eu não via mais os lenços brancos, nem a saudade atrás da foto três por quatro. O negrito doído da palavra despedida, a cândida havia apagado.

Viola no saco

Vou embora!
Enfiar a viola
no saco...
Sonhar com
Antonela...
com flores na cabeça!

Sim, senhora!
Andar por reinos
tão proibidos...
tão gélidos...
como um vôo noturno...

E quem sabe...
Usar o amor
que ainda não conheço...

Como para-quedas,
Nesta queda ignóbil...
Por estradas
Rumo ao desconhecido...

Tocando na viola...
A marcha funebre...
Da fé e da inocência!

O Longe

"Ex-Perto"

A rodoviária

Tem cheiro
de saudade...
de lágrima...
de véu e grinalda...
de sonho despedaçado...
de duvida...
de blá-blá-blá...
e blá-blá-blá...
e blá-blá-blá...
Mas principalmente,
Tem cheiro de lonjura!
Das criança! Do véio e da véia!
E de Severina e o meu sertão!

Meu lugar

Familia vem
se despedir...
Criança
perdida chora...
"Vambora! Vambora!"

É um tal
de ir e de chegar...
Gente sem rumo...
Sem lugar...

Gente
que veio buscar sonho!
Gente
que bateu tanto cabeça
que acordou!

Uns vem
Outros vão...
Tem gente que veio das férias
Tem gente que morreu na estrada!

Vidas em movimento,
Onde vão parar?
Num céu idealizado?
Na cova...Tão real?

Eu só observo,
E escrevo...
Não quero ir, nem chegar...
Quero morrer nas letras...
Eis o meu lugar!

terminal

(Por Karla Jacobina)



O terminal é sempre igual
passa um monte de gente
diferente

pérola de noronha

por Ferrari

Fernando de Noronha me proporcionou uma pérola. Encontrei-a na boca de um morador. Disse ele, que certo dia, quando Noronha ainda servia de presídio, o comandante responsável voltou do continente com um baú cheio de cobras venenosas. Ele foi incumbido de espalhar as cobras pela vegetação pra que os prisioneiros fugitivos morressem picados. Então, logo que o comandante chegou na ilha, mostrou o baú com as cobras aos prisioneiros e os alertou do perigo de fugirem do forte. Feito isso, pegou o baú e foi pro meio do mato cumprir as ordens que tinha recebido. Porém, o comandante foi pensando no caminho que, por também ser um morador da ilha e por não ser um prisioneiro do forte, a pessoa mais prejudicada com aquele ato seria ele mesmo, pois quem mais precisava e gostava de cruzar aqueles matos era ele. Então, parou perto de uma pedra, pegou o facão da cintura e cortou, uma por uma, a cabeça de todas as cobras do baú. Depois voltou pro forte com o baú vazio, mas nunca contou pra ninguém o que fez com as cobras. “É por isso que hoje em dia os turistas podem andar tranqüilamente pelas matas de Fernando de Noronha”, concluiu o narrador da história. Não tenho como afirmar se a história é histórica ou mitológica. Mas nem por isso deixa de ser uma pérola.