em branco

Poetas catadores, catalegrias, catapaixões...

Imagem: henriquecorreia.blogspot.com

Na Papoetaria de 12/11, André Dia(s/z)? leu o surpreendente conto de Álvaro Cardoso Gomes, “Achados na Praia”, em seguida, sorteou entre nós alguns sentimentos. A ideia era que cada um escrevesse sobre o sentimento sorteado como se este fosse um objeto recém encontrado pelo poeta. E mais, com a proibição de citá-lo no texto. Veja só no que deu:  


Achados na Praia
de Álvaro Cardoso Gomes
(trecho) Leia na íntegra em na Revista E, clicando aqui
 

Tenho achado coisas interessantes na praia. Outro dia, encontrei uma mulher boiando no riacho. Em meio a caixas de papelão, latinhas de cerveja, garrafas de refrigerante, sacos de lixo, ela se deixava levar em direção ao mar. Quando empacou num banco de areia, resgatei-a das águas e dos detritos.
Estava imunda e mal lhe podia divisar os traços. Levei-a, então, para casa e, com detergente, sapólio e uma grossa bucha, consegui tirar as manchas de óleo e barro. Depois que lhe dei um banho, usando sabonete e xampu, reparei que era muito bela. Tinha a pele branca, quase transparente, os cabelos loiros como o trigo, o corpo pequeno, os seios miúdos e pernas longas. Mas o que mais me encantou foi a boca vermelha como um morango(...) (para terminar de ler o conto, clique aqui)


Madrugada
Paulo D’Auria

“Se é macumba, chuta!” Diziam os garotos da minha vila. Mas eu via as balas, a pipoca, a canjica, e pensava: “Chutar? Por que a gente não come?”
Pois ontem de madrugada, voltando para casa, dobrei uma esquina e chutei, sem querer, mas com força, uma macumba. Tudo pelo chão: pinga cheirando, tigela partida, ebó esparramado. E um charuto rodopiando pelos ares em câmera lenta.
Com o chute, subiu, deu duas ou três voltas na frente do meu nariz, e caiu, chovendo brasas pela calçada. A fumaça ficou pairando no ar.
Fiz conchas com as duas mãos, capturando-a, e levei a órfã para casa. Lá, guardei-a num vidro vazio de palmito.
Deitei, mas não conseguia dormir em paz. Talvez (a voz da garotada ecoando no tempo) tivesse aborrecido alguma entidade, que agora me punia com insônia e angústias.
Fui buscar o vidro. A fumaça parecia se adensar. Era como se o charuto inteiro tivesse queimado ali dentro.
Liguei a TV para esquecer: “Fala que eu te escuto”, “Disque-amizade”, “Gincana eletrônica”. Eu não estava vazio o suficiente para encarar as bizarrices da madrugada com humor.
De soslaio, olhei para o vidro no criado-mudo. A fumaça se adensando mais e mais. Não era nenhuma entidade que me assombrava, era ela, a fumaça, viva, tumor sob a pressão da tampa rosqueada.
Encarei-a de frente, eu sabia o que tinha de fazer. Abri a tampa e traguei a fumaça toda de uma vez.
Eu não estava vazio o suficiente. Ali dentro, ardendo, era como se o charuto inteiro tivesse queimado.



Coração de Cristal
Marcelo Tadeu

O que tinha dentro daquela caixa
Jogada no lixo
Que brilhava tanto?
Me aproximei ainda com medo
Peguei a caixa com receio
Quando a abri
Para a minha surpresa
Eis que surge
Um objeto tão essencial
Um coração de cristal
Muito estranho
No lixo
Um símbolo
Uma representação
Um objeto
Tão bonito
Baseado no qual
Todo homem
Toma sua decisão


Braços
André Dia(s/z)?

Cabisbaixo
andava
debaixo do céu cinza,
chutou algo que rolou
até a sarjeta.
Limpou as camadas de lama
das pontas,
enfiou no bolso,
foi pra casa.
Lavou,
começou a brilhar.
Sorrindo
correu até o quarto
pendurou em cima da cama
e ficou olhando
o brilho das pontas
se tornarem braços
que embalaram seus sonhos.
Eram os braços da mulher amada
perdida num tempo longínquo
personificada agora
numa simples estrela
de papelão dourado.



Caneca de Chá
Carolina Hermanas

Entro na loja de penhores
E o encontro no meio da bagunça,
Empoeirado num canto.

Brilha como um cristal
E me olha como um diamante
Não resisto, olho na mesma direção,
E compro.

Chego em casa saltitante
Com o novo brinquedo,
Dou para ele um pouco de água
E observo seu movimento uniforme.

Borbulha de um jeito único,
Eletrizando-me ao encostar-se em mim,
Esquenta meu semblante com seu calor,
E derrama-se sobre meu corpo.

Em tempo: Paulo D’Auria escreveu sobre a Dor, Marcelo Tadeu sobre a Razão, André Dia(s/z)? sobre a Alegria e Carolina Hermanas sobre a Paixão.

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