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Só não há vagas para guarda-chuvas

por Renato Silva


O equilíbrio da nissei que perdeu o rebolado
na Estação Santo Amaro
na

Estação Santo Amaro
desamparo

A vida do mineiro que perdeu a pulsação
na Estação Vila Carrão
na

Estação Vila Carrão
comoção

A paciência da baiana que perdeu a paz
na Estação Brás
na

Estação Brás
Satanás!

A timidez da paraense que perdeu a solidão
na Estação Conceição
na

Estação Conceição
atração

A coragem do judeu que perdeu a paquera
na Estação Itaquera
na

Estação Itaquera
quem dera

O chão da amazonense que perdeu a alegria
na Estação Santa Cecília
na

Estação Santa Cecília
uma ilha

A higiene do gaúcho que perdeu o cumprimento
na Estação São Bento
na

Estação São Bento
constrangimento

A pureza da goiana que perdeu o juízo
na Estação Paraíso
na

Estação Paraíso
improviso

Só não há vagas para guarda-chuva, sinhô,
nos achados e perdidos do Metrô.


Cidadão das nuvens
Renato Silva

Aonde a coruja dorme

Cidadão das nuvens


O ditador imita Hitler
pelo tempo de um apito -
inicia-se a partida.

No tabuleiro de xadrez esmeralda
brotam as primeiras jogadas.

Uns vão de unha;
outros palavrões, amendoins –
a multidão mastiga.

Esfera pergunta: és fera? -
de pé em pé, de ouvido a ouvido.

Um torcedor cala o rádio,
para cantar o galo
do treinador careca.

Apenas a tiete despreza
o bem-me-quer da bola.

Agasalhado e de luvas,
o arqueiro destoa
do resto do estádio.

O auxiliar é o único sério
a tremular bandeira.

Na barriga da mulata grávida
o recém-nascido brasileiro
chuta com estilo.

A rede é o véu da noiva trave
a esperar o gol de letra.

Aonde a coruja dorme:
Pesadelo de goleiros,
sonho de artilheiros.

Gol: metade do estádio tira
palavras da boca da outra metade.


Cidadão das nuvens
Renato Silva

Chutebol

Renato Silva - Das nuvens



Vai ser chutebol
a tarde inteira
Pega o gelol
e a caneleira

O tempo a gente chuta de chuteira
Cobra lateral de lá da beira
Arruma confusão, luva, barreira
Bebe água da torneira

Vai ser chutebol
a tarde inteira
Pega o gelol
e a caneleira

Mete um cartão em quem faz cera
Dribla de chapéu, lençol, chaleira
Chinelo vira trave, brincadeira:
que goleiro fim de feira

Todo brasileiro é
unha e carne com os dedos
de Pelé

Todo brasileiro é
unha e carne com os dedos
de Mané.

Tripas de Salmão

Renato Silva




No pequeno espelho maltratado do banheiro, cujas rachaduras formam um V com pequenas pernas ou um X com grandes braços, aparando o cavanhaque ruivo, a se preparar para a saída , Laerte escutava as primeiras palavras do ventríloquo domingo, em cujas mãos revezavam-se bicicletas, moças de igreja, boêmios retardatários e andorinhas, entre tantos outros personagens. Penso que esse dia é o melhor dos ventríloquos e atua melhor pela manhã. Também penso que deveria existir o dia da nudez - mas essa pacholice escapa totalmente ao tema.

Ao adentrar a sala, que inundada pelo negro aroma do café parecia aumentar a estima daquelas empoeiradas mobílias, do quadro de seu falecido pai e do maltrapilho tapete, encontrou a mãe ardendo em febre a preparar-lhe a lista.

Um boné de vereador, dois quarteirões, quatro cumprimentos, oito minutos: chegou à feira. Principiou as compras.

Inicialmente mexericas, cuja amostra gratuíta despejou-lhe na boca a primeira refeição do dia; abacates, que em um duelo mais prolongado com seus magérrimos dedos poderiam triturá-los; e uma manga, menos pela lista que pela persuasão dos empinados seios da mulata: apalpava-nos em sua catarse; salivava até; ao estourar um deles, acabou por pagar dobrado.

Uma pausa para o pastel, cujo ar quente, oriundo da primeira brecha inaugurada pelos dentes semi-cerrados, embaçou-lhe a vista, confundindo seus olhos de jabuticaba: essa que, alertando-vos deveras, Laerte esquecerá; as bananas também.

De volta às compras,morangos, rubros como o sol que tirava de sua magreza de cana um excesso de caldo; maçãs, por sinal, as fundadoras não só da feira, como de Roma, do Capitalismo, dos Beatles, do São Paulo Futebol Clube, do Apartheid, deste conto, do Bandido da Luz Vermelha, e de tudo que surgiu e surgirá na galáxia desde o instante da mordida de Eva; e, a medida que essas frutas ganhavam companhia no carrinho de ferro, torto, com uma das rodinhas ébrias, Laerte sonhava, sem ao menos saber, algo como a possibilidade de revogar a lei da gravidade, tamanho o peso de seu carregamento; tamanha a vontade de flutuar sobre aquele enxame de oferta e procura, aquele engarrafamento de vozes, aquela gritaria de carrinhos.Finalmente o Salmão, e pode enfim retornar à pensão, na Rua Aurora, no velho centro de São Paulo.

Minutos depois, lá estava o nosso vendedor ambulante fatiando o Salmão , premeditando o almoço, quando deparou-se com o improvável: que fosse em um morro, esquina ou bar; que fosse no cartão de crédito de um amigo ou em um prato préviamente aquecido... mas ali, no ventre do peixe, encontrar o que atormentou-lhe durante vinte, de seus trinta e três anos?E da pura, por sinal. Logo ele que, se não estava viúvo, pelo menos divorciado do vício, há meia-dúzia de meses; logo ele que trocara a mulher e os três filhos pelo pó ; logo ele que, não resistindo àquela nova provação se confinará no banheiro, munido de duas garrafas de conhaque, por horas e horas; logo ele que não sabe (e nem quer saber) da ira dos traficantes que, fruto de um pequeno desentendimento, receberam o lote de peixes errado, e contabilizam, irritadiços e infernais, o prejuízo de quem não poderá comercializar tripas de Salmão.



Cidadão das nuvens
Renato Silva