em branco

Passeios no Inferno

Foto: Tiago Queiroz A/E
Cracolândia
Caranguejúnior
Na Cracolândia
As “pedras” do caminho
São mais duras
São quentes, deslizam, cortam e machucam

Homens mortos vivos homens
Mulheres zumbis zombadas pela vida
Crianças famintas não ganham presentes
Tão pouco... futuro? É tão pouco

Pessoas Para-lamas? Um trago...

“O governo apresenta suas armas”

Pessoas transparentes
Indigentes, impotentes
E um governo inconsequente
Que não está pra ajudar

A estação da Luz
É uma escuridão só
A Julio Prestes
Não presta
Aos olhos do bom homem
Que Governa a dor
Aos olhos do bom homem
Pré feito pré pago

Bombas de efeito (i)moral
Para os homos injustiçadiens

Balas de borracha para as crianças
Que vendem balas no sinal fechado do mundo

Cacetetes para as negras mulheres brancas amareladas
De sol, chuva e desumanidade

E mais uma vez
“A polícia apresenta suas armas”

Humanos esquecidos pelas leis
Dos humanos
Esquecidos pelos humanos sem leis
E pela desumana humanidade

Nem craques, nem deputados

É o povo deportado, degredado...
Num País que se perdeu
Em meio a tantas “pedras” no caminho.

Lá, o lugar que é o antônimo das maravilhas do País
Chamado Cracolândia.
 
O outro lado
Paulo D’Auria
Isso já me aconteceu antes. Virei para o outro lado — o lado errado. Em vez de ir pela direita, fui pela esquerda. Ao invés de descer a Correia de Melo, desci a Lubavitch. E lá estavam eles, debaixo de cobertores sujos, dormindo na calçada. Dormindo ao lado do lixo, meio dentro meio fora de móveis velhos semidestruídos. De caixas de papelão descartadas dos supermercados.
Já teve quem tentou esconder. Impossível. Até na foto do Google Street View eles aparecem dormindo nas calçadas da Lubavitch.
Já teve quem fingiu não ver. Mas até os cegos tropeçam neles.
Já teve de tudo. Só nunca teve quem tentou resolver.

Isso já me aconteceu antes. De carro com um amigo tentei pegar um atalho da Luz para a Marginal, cortando por dentro do bairro, fugindo assim da Tiradentes/Santos Dummond.
Meia-noite, uma hora mais ou menos. Caímos direto na fendalândia, na frestalândia, rupturalândia. E lá estavam eles. Centenas. Cobertores nas costas avançavam a rua.
Centelhas nos olhos, feito zumbis do clip do Michael Jackson.
Turba, feito o Inferno de Dante.
Tinham personalidade, esses Miseráveis, de Victor Hugo.
Mas estes não eram personagens. Estes eram reais — Eram? Porque quando perguntados pelo Globo Reporter, eles mesmos não souberam responder.

É claro que eram. Digressiono, redireciono a conversa, versejo para tentar justificar o que disse assim que ultrapassamos a multidão. Meu amigo confessou, assim que ultrapassamos a multidão, “Cara, tive medo”. E eu respondi, “Se alguém viesse pra cima, eu atropelava”. Eu disse, assim que ultrapassamos a multidão. “Não tava nem aí. Atropelava”. Eu disse, repito, assim que ultrapassamos a multidão.
Eu disse. Eu, um imbecil qualquer. Eu disse, encarnando um personagem do Rubem Fonseca. Pior, do Datena. Eu disse. E meu amigo professor universitário sorriu aliviado. Seu sorriso dizia, “Meu amigo macho”. Seu sorriso imbecil qualquer.

Isso já me aconteceu antes. Inúmeras vezes. Virei pro outro lado — O lado errado? — e lá estavam eles. Dormindo, perambulando, cozinhando, amando, amamentando.
Outro lado. Isso já me aconteceu antes. Parado no semáforo, ela veio — Mania de andar de madrugada. A cidade só existe de dia. Fora disso, perde a garantia — Ela veio, fechei o vidro. O filme escuro do vidro. Ela grudou, fez conchas com a mão. Não viu nada, grudou no vidro grande da frente, o tal para-brisas, esse que a lei proíbe escurecer. Grudou e falou, “Não adianta, eu tô te vendo.”
Eles nos veem. Nós é que tentamos não ver. Nós tentamos não ver as nossas próprias assombrações e fechamos os olhos para eles. Mas estas assombrações são reais.
Eles nos veem. Eles vêm. Eles avançam a rua. O sinal. A cidade inteira. A cidade cheia, a cidade oca. Cidade casca.

Isso já me aconteceu antes. Em cada esquina um elo perdido para este mundo paralelo. Basta virar para o outro lado — O lado errado? O lado oculto? O lado escuro?
Basta virar para o outro lado. O avesso, o inverso, a esmo.
O outro lado, o resto — O lado certo?
As realidades paralelas estão todas aqui, na outra calçada da mesma cidade
Cidade fraca. Cidade máscara. Ilusão.
Cidade rasa. Cidade falsa. Cidade vão.
Isso já me aconteceu antes.